Para compreender a formação do Brasil como sociedade, é indispensável entender como se organizou a posse da terra desde os primeiros momentos da colonização. A estrutura fundiária brasileira não surgiu de forma espontânea nem equilibrada. Ela foi construída a partir de decisões políticas, interesses econômicos e estratégias de dominação territorial que moldaram profundamente o espaço rural e influenciaram as relações sociais ao longo de séculos.
Quando os europeus chegaram ao território que hoje chamamos de Brasil, encontraram uma vasta extensão de terras habitadas por inúmeros povos indígenas. Essas populações possuíam formas próprias de ocupação do espaço, baseadas no uso coletivo da terra, na mobilidade territorial e na adaptação aos ciclos da natureza. A ideia de propriedade privada da terra, como concebida na Europa, simplesmente não existia entre esses povos. O território era vivido, compartilhado e respeitado como parte essencial da vida comunitária.
A partir do momento em que o território passou a ser incorporado ao projeto colonial português, essa lógica foi completamente transformada. A terra deixou de ser vista como espaço de vida coletiva e passou a ser tratada como recurso econômico. O objetivo central da colonização não era apenas ocupar o território, mas explorá lo economicamente e garantir lucros para a metrópole. Para isso, era necessário criar mecanismos que organizassem a posse da terra de acordo com os interesses coloniais.
O primeiro grande marco dessa transformação foi a adoção de um modelo de distribuição de terras inspirado em práticas já utilizadas pelo reino português em outros territórios. Esse modelo foi implantado em um contexto de colonização voltada para a exportação de produtos agrícolas, especialmente aqueles que exigiam grandes extensões de terra. Desde o início, portanto, a ocupação do solo brasileiro esteve associada à concentração fundiária.
A divisão do território em grandes faixas administrativas foi um passo fundamental nesse processo. Essas grandes porções de terra foram entregues a poucos indivíduos, que receberam amplos poderes para administrar, explorar e distribuir partes menores dessas áreas. Embora a terra continuasse formalmente vinculada à Coroa, na prática ela ficava sob o controle direto desses administradores, que passaram a agir como verdadeiros senhores do território.
Dentro desse sistema, surgiram os mecanismos de concessão de terras a particulares, conhecidos como sesmarias. A justificativa oficial era estimular o cultivo e evitar que a terra permanecesse improdutiva. No entanto, o modo como essas concessões foram realizadas acabou gerando um efeito oposto ao discurso inicial. Em vez de promover uma distribuição equilibrada da terra, as sesmarias favoreceram a concentração fundiária.
As concessões eram feitas, em sua maioria, a indivíduos que já possuíam recursos financeiros, influência política e capacidade de investir em grandes empreendimentos agrícolas. Pequenos produtores, pessoas sem capital e grupos marginalizados tinham enormes dificuldades para acessar a terra. Além disso, as sesmarias costumavam ser extensas, mal delimitadas e pouco fiscalizadas. Isso permitiu que muitos beneficiários acumulassem grandes áreas sem necessariamente utilizá las de forma produtiva.
Outro fator essencial para a consolidação da estrutura fundiária brasileira foi o tipo de economia implantada na colônia. O modelo econômico predominante era baseado na monocultura voltada para o mercado externo. Esse tipo de produção exigia grandes propriedades, mão de obra abundante e controle rígido do território. Pequenas propriedades não se encaixavam nesse modelo, pois eram vistas como pouco eficientes e pouco lucrativas dentro da lógica colonial.
Assim, a grande propriedade rural tornou se a base da economia e da organização social. A posse da terra passou a definir status social, poder político e acesso a recursos. Os grandes proprietários concentravam não apenas a riqueza, mas também a autoridade local. Eles ocupavam cargos administrativos, controlavam as decisões políticas e exerciam influência direta sobre a população que vivia e trabalhava em suas terras.
Esse processo foi acompanhado por uma profunda exclusão social. Povos indígenas foram expulsos de seus territórios tradicionais, empurrados para regiões cada vez mais distantes ou submetidos a relações de dependência e violência. Trabalhadores livres sem acesso à terra tornaram se agregados, arrendatários ou empregados dos grandes proprietários. A maioria da população não tinha qualquer possibilidade de se tornar proprietária, perpetuando uma estrutura altamente desigual.
Com o passar do tempo, essa concentração de terras foi se naturalizando. As grandes propriedades eram transmitidas de geração em geração, reforçando a continuidade do latifúndio. Mesmo quando ocorreram mudanças administrativas, políticas ou econômicas, a base fundiária permaneceu praticamente intacta. A terra continuou concentrada nas mãos de poucos, enquanto a maioria da população rural vivia em condições de dependência.
A ausência de políticas efetivas de redistribuição da terra ao longo da história contribuiu para a manutenção dessa estrutura. Em diversos momentos, surgiram debates e propostas de reforma, mas raramente elas foram implementadas de forma ampla e consistente. A força política dos grandes proprietários sempre foi um obstáculo significativo para qualquer tentativa de mudança profunda.
A estrutura fundiária brasileira, por conseguinte, é fruto de um processo histórico contínuo, iniciado na colonização e reforçado ao longo dos séculos. As escolhas feitas naquele momento inicial moldaram o modo como o território foi ocupado, explorado e controlado, criando desigualdades que atravessaram gerações.
Entender a origem dessa estrutura é essencial para que nós possamos compreender muitos dos problemas sociais, econômicos e políticos que marcaram o Brasil ao longo de sua história. A concentração de terras está diretamente ligada à desigualdade social, aos conflitos no campo, à exclusão de populações tradicionais e às dificuldades de desenvolvimento equilibrado do espaço rural.
Ao olhar para a formação da estrutura fundiária brasileira, fica claro que a terra sempre esteve no centro das disputas de poder. Desde o início da colonização, ela foi utilizada como instrumento de controle, enriquecimento e dominação. Essa herança histórica ajuda a explicar por que o acesso à terra continua sendo um tema tão sensível e tão central nos debates sobre o Brasil. Esse processo não foi inevitável, mas resultado de decisões específicas, tomadas em um contexto de exploração colonial e interesses econômicos concentrados.
